terça-feira, 27 de dezembro de 2016

A saga de Maria Rosária, do Tremedal



                                                 Daniel Antunes Junior
                                                         Cadeira 43 - Patrono
                                                         Teófilo Benedito Otoni
               
Desde os tempos da colonização brasileira até aos nossos dias, com predominância no período imperial, tivemos em nossa querida e altaneira Minas Gerais, vários exemplos de mulheres valorosas.
Cada qual a seu modo, empolgando a mente dos homens, com determinação, coragem e desenvoltura, elas marcaram época, deixando após si um rastro de notoriedade. Dentre outros, destacam-se  os casos, de Chica da Silva, de Diamantina, -  a “escrava que virou rainha”,  -  o de Dona Beija – a famosa cortesã do Araxá,  -  e o da  quase lendária Joaquina do Pompeu – a “Sinhá Braba”, que teria recebido do Imperador, de presente por seus feitos, um cacho de banana de ouro...
Todas elas fizeram jus a extensas e expressivas biografias. Chica da Silva e Dona Beija foram protagonistas de festejadas novelas de televisão, e a matriarca Dona Joaquina Bernarda da Silva de Abreu Castelo Branco, - cuja fama é bem maior que o próprio nome -  deixou enorme e conspícua descendência, da qual fazem parte o jurista Francisco Campos, o “Chico Ciência”, e o Dr. Deusdedit Pinto Ribeiro de Campos, nosso ilustre e tranquilo consócio no Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais.
                          Tivemos mais as três Marias, que igualmente enriqueceram a nossa história: Maria da Cruz, nas barrancas do Rio São Francisco, Maria Tangará, em Pitangui, e Maria Rosária, nos confins de Minas com a Bahia, -  esta,  ainda pouco conhecida dos nossos  escribas.
Note-se que estas três Marias nada têm a ver com a florescente cidade de Três Marias, que fica próxima da Hidrelétrica do mesmo nome, no Rio São Francisco. O nome da cidade é merecida homenagem a outras três Marias: Maria Francisca, Maria das Dores e Maria Geralda, que outrora, naquele mesmo lugar, sucedendo aos pais, mantinham a modesta pensão, na qual pousavam tropeiros e viajantes que passavam por ali.
 Foi assim que, da simplicidade cativante das três irmãs pioneiras, - tomadas como símbolos da hospitalidade de nossa gente, - surgiu o nome que pegou para ficar, distinguindo a cidade menina, vocacionada para o progresso e cheia de vida.
 Mas vamos falar aqui, de modo especial, apenas de uma das seis Marias, a do extremo Norte de Minas, com um histórico controverso, que clama por uma análise serena e isenta de preconceitos.
 Maria Rosária da Rocha Pereira foi, antes de tudo, uma desbravadora dos nossos sertões.
O aprazível sitio, por ela adquirido, estendia-se num grande vale, que ia de serra a serra, atravessado pelo Rio Tremedal, tendo de um lado a destacada montanha da Sela Gineta e, do outro, o portentoso monte azul, nos contrafortes da Serra Geral, descortinando-se magnifico panorama. O lugar nada tinha de pantanoso, a não ser pequena área, onde se formou vistoso coqueiral, semelhante a um oásis. Situava-se no chamado Sertão do Rio Pardo, e integrava o patrimônio territorial da Casa da Ponte, sucessora do Morgadio Guedes de Brito. Sua aquisição foi realizada ainda no último quartel do século 18, razão pela qual seu registro, com os limites e confrontações, não consta no Livro do Tombo, datado de 1819.
Mas nesse documento histórico, o nome de Maria Rosária é citado, como confinante, no registro do Sítio Riacho Seco, nas proximidades da Serra Geral, arrendado por  Antônio de Macedo Portugal.
Além disso, na escrituração dos sítios de Bom Sucesso, Dourados, Lençóis, Pajeú e Riacho Abaixo, situados no  entorno do arraial que hoje é a cidade de Monte Azul, há referências ao Rio Tremedal, ao caminho de Tremedal e até ao próprio sítio de Tremedal, ficando evidente que dito arraial surgiu antes do ano 1800.
                         A legendária Maria Rosária, amasiada com o português Pompeu, que morreu assassinado por questões de terras, foi a fundadora do antigo Tremedal, hoje cidade e comarca de Monte Azul, outrora  das mais extensas do nosso Estado.
                         Na época, toda aquela região estava infestada de aventureiros, ignorantes e valentões, Mas Maria Rosaria, mulher destemida, sabia lidar com eles, impondo sua autoridade.
                         Grande faixa do extremo Norte de Minas pertencia à Província da Bahia, e integrava a sua grande Comarca de Jacobina.
                        Por volta de 1760, essa área transferiu-se, para a Capitania de Minas Gerais, e Tremedal passou a compor o Distrito de Minas Novas, na  Comarca da Vila do Príncipe do Serro Frio, atual cidade do Serro.
                       Em 1819 era titular da Casa da Ponte o 6º Conde,  Gal. João da Saldanha da Gama Melo Torres Guedes de Brito,  filho do Marquês Manuel Saldanha da Gama, (descendente grande navegador Vasco da Gama).       
O Marquês, ficando viúvo da morgadinha Joana Caldeira Pimentel Guedes de Brito (da qual herdou todo o patrimônio dos Guedes de Brito), casou-se, em segundas núpcias com a viúva Francisca Joana Josefa da Câmara, mãe do Conde.
Como se vê, o General não descendia, geneticamente, do morgado Antônio Guedes de Brito, mas  adotou o sobrenome deste, somado a outros, em razão de seu casamento e atendendo a disposições institucionais do morgadio. 
O 6° Conde da Ponte foi também Governador Geral da Província da Bahia, de 1805 a 1809. Foi ele quem recebeu, na então capital de Salvador, em 1808, a família real de Dom João VI, com uma numerosa comitiva (cerca de l5.000 pessoas) quando se transferiu a sede da Coroa Portuguesa para o Brasil, em função da invasão de Portugal pelas tropas de Napoleão Bonaparte.
Vale lembrar que esse acontecimento, da maior importância histórica, concorreu, decisivamente, para a vinda de considerável contingente de imigrantes portugueses, que se fixaram no referido Sertão do Rio Pardo, então em evidência, pela proximidade da nova sede do Reinado Português. Vieram, por assim dizer, nas águas do rei e para ficarem perto dele...
  Referido Sertão foi habitado por tribos nómades da nação tapuia, como já dizia na sua famosa carta o padre João de Aspilcueta Navarro, integrante da primeira expedição ao território brasileiro, (que passara pelo local) comandada pelo castelhano Francisco Bruzza Espinosa.
Na fase dos assentamentos portugueses, a população indígena no Norte de Minas e Sul da Bahia já era escassa, em virtude dos massacres praticados impiedosamente pelos primeiros colonizadores,  ao tempo de Matias Cardoso. Muitos índios, que eram os donos das terras, foram abatidos como feras. Mas os novatos conviveram com índias já velhas e mansas, bem assim com   alguns nativos ainda  rebeldes, muitos dos quais, aos poucos, se deslocaram para o Jequitinhonha.
Mas reza a tradição oral que ao tempo de Maria Rosária, naquelas bandas, muitas índias, na flor da idade, foram agarradas, domesticaram-se, casaram-se e tiveram filhos com os primeiros exploradores, cujos descendentes se miscigenaram com outras etnias.
Exemplo disso foi o que aconteceu com Joaquim Antunes de Souza, (cujos antepassados, de procedência hebraica, vieram de Portugal, fugindo da famigerada Inquisição). Ele capturou a laço e com auxilio de cães uma índia, que foi levada para casa, amansada e batizada com o nome de Luzia. Dizem que era uma bela mulher, com a qual Joaquim se casou, com a permissão e a benção de seus pais. O autor destas notas é o seu pentaneto.
Voltando à história de Maria Rosária, sabe-se que essa varoa de ébano era de procedência africana, mas seus ancestrais são desconhecidos. Com certeza, veio ela para Bahia e de lá para Minas, de cambulhada com os portugueses, eméritos apreciadores das nativas d’África. Pompéu, seu amante, era lusitano... Teria tido uma única filha, mas deixou numerosos descendentes, alguns consorciados com os Antunes de Brejo dos Martyres.
Vários escritores cuidaram da história da fundadora do arraial de Tremedal. Muitos deles não a perdoaram, pelo fato de ser negra, mandona e corajuda. Mas, sem dúvida, foi uma pioneira valorosa, de gênio forte, fazendo jus ao titulo de Patrona do Tremedal. .Antonino Neves já advertia que a personalidade de Maria Rosária não podia ser estudada através da tradição popular, sempre fantasiosa.
 Ela era temente a Deus e devota de Maria Santíssima. Seu  grande mérito, e a prova de sua religiosidade, foi ter doado o terreno para nele  erigir-se a Igreja, consagrada à  mãe do Redentor, ficando a construção a cargo de seu genro Joaquim Fernandes dos  Anjos,
Hoje, ergue-se, no mesmo lugar, a Matriz de Nossa Senhora das Graças, um templo imponente, de etilo neoclássico.
Maria Rosária, mulher varonil e empreendedora, desenvolta e rica, não era uma santa. Por certo tinha os seus pecados, mas também suas virtudes, não reconhecidas pela maioria dos de seus biógrafos. Mas ninguém negou a sua índole religiosa, tanto que mandou construir a igreja em seus domínios. Na melhor hipótese, houve quem lhe desse  uma colher de chá, mas para dizer que, enquanto acendia uma vela à Virgem, aceitava as tentações do demônio...
Muitos só viram nela a encarnação de uma voluntariosa Messalina sertaneja, protagonista de bacanais homéricas, que lembram os tempos bíblicos de Sodoma e Gomorra, e o pecado que por vingança teria cometido, infame, mas não comprovado, de ter mandado um escravo seu envenenar o vinho de missa do frei italiano, Clemente Adorno, por ter o mesmo, em inflamados sermões, verberado o seu comportamento pessoal devasso.
A versão, nitidamente teatralizada, da vingança, da causa mortis e do anátema, põe em duvida, sobretudo, as virtudes de fé cristã do sacerdote.  Teria o mesmo, sem um mínimo da caridade pregada pelo Divino Mestre, lançado esta terrível maldição, que diretamente nem atingia Maria Rosária?
‘...vou morrer! Mas ai do vil envenenador e da terra que habita...”
Não é justo anatematizar todo um povo e sua terra pelo crime isolado de alguém.
E não se pode tomar qualquer tipo de suspeita como prova cabal, nem desprezar circunstâncias ponderáveis na análise de um problema.
Sem discrepância alguma, todos os que trataram do assunto narram que o piedoso sacerdote, depois de cinco dias de longa e cansativa caminhada entre Tremedal e Rio Pardo, ao chegar à fazenda São Bartolomeu, já estava gravemente enfermo. E piorando muito o seu estado de saúde, na manhã seguinte, ao celebrar a missa, bebeu do vinho suspeito, (que uma vez consagrado não podia ser descartado), para morrer à noite, sendo levado para o sepultamento em Rio Pardo, com grande acompanhamento.
Ante o sofrimento e a morte do carismático sacerdote, cujas palavras empolgavam multidões, a comoção popular, se não criou, pode ter ampliado a dramatização do desenlace.
Podemos encerrar, neste ponto, o relato que se refere à vida e à obra da controversa Maria Rosária, a Patrona do Tremedal, outrora terra dos coronéis – o último dos quais foi o Cel Levy Souza e Silva, figura de relevo, que também marcou época.
Inteligente, culto e empolgante, governou o seu município por longos anos, sagrando se como personalidade das mais importantes do Norte de Minas, em termos políticos, econômicos e sociais.
Mas aqui vai um registo final:
O sítio e arraial de Maria Rosária, por não ser paludoso, não fazia jus ao seu nome. Mas teve seus dias turbulentos, com a infestação de aventureiros, desordeiros e brigões, como o Correinhas e o gorutubano Picuambas, que aos 21 anos de vida, diziam, já tinha 22 mortes nas costas. Dele se dizia que até o famigerado Athayde tinha medo...
O termo “tremedal” segundo o “pai-dos-burros”, designa área pantanosa, charco, e também indica decadência moral, depravação e aviltamento.
Para apagar a indesejável conotação, coube ao Cel Levy, em 1938, dar a nova, bela e significativa denominação de Monte Azul, à sua terra natal, inspirado na obra perfeita da Criação Divina.  
 

  







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