Agora,
Daniel traz a lume o livro citado. Logo no início, faz homenagens especiais
a Anacreonte, “poeta lírico
grego, que celebrou, em versos ligeiros e graciosos, o amor, o vinho e os prazeres da mesa”, e a
Lord Byron, “poeta inglês, herói romântico, donjuanesco, satírico e espirituoso.”
Os
textos de Daniel deslumbram o leitor. Por exemplo, ao fazer considerações
sobre a poesia na literatura, observa
que “os poetas têm o dom de sentir e
identificar o que há de romântico no mundo que nos rodeia e do qual
fazemos parte, isto é, tudo quanto há de
elevado ou comovente nas pessoas ou
coisas, ” Na realidade, os poetas têm, como disse Cesário Verde, o dom de ver em
palimpsesto – onde está, o que não está
– ou seja, os poetas vêem além e melhor
do que os outros.
O
autor realça o soneto que, segundo ele,
“sintetiza e expressa,
na sua forma e transparência, a
mais pura essência do sentimento lírico e, através
da musicalidade das palavras, nos
enleva pela beleza sonora do verso”.
No
tocante aos trabalhos de Daniel, há muito o que ser destacado, tal como o “Tributo ao Torrão Natal”
e o “Otimismo do Vavá”, o ultimo uma
lição de vida nos dois tercetos do soneto:
“Feliz quem se contenta com o que é seu,
Valorizando sempre, e de boa mente,
O
que conquistou, ou que a sorte lhe deu.
Pois a felicidade nunca bate à porta
Do eterno e amargurado descontente,
Para quem nem o céu satisfaz ou
conforta...”
Interessantíssimo
é o soneto “No tempo do pequi” e suas propriedades afrodisíacas.
A
esposa e musa Conceição é homenageada em
diversos sonetos, dos quais destaco os excertos abaixo:
“De bem com a vida, nas carícias do
ninho,
A seu lado do pomo do amor desfrutei,
Com total lealdade, dedicação e
carinho.”
E
“Na intimidade de um amor fecundo,
Com alegria de alma e coração,
Juntos, para o prazer imenso, profundo,
Celebramos vida com glória e emoção.”
Celebra Daniel, também, a sua idade, com a alegria e o entusiasmo que lhe são
peculiares:
“NOVENTÃO
Como cheguei até aqui, lépido e
fagueiro,
Com todas as funções vitais a contento,
A desfrutar do dom da vida, prazenteiro,
Eu mesmo não saberei dizer, se tento...
Decerto não ficarei para semente,
Neste mundo maravilhoso e renovável:
Um dia partirei, como todo ser vivente,
Com antecipadas saudades dessa vida amorável.
Será com pesar que direi adeus a dedicados
|Amigos
que aqui deixarei para sempre.
Todos
eles inexcedíveis nos seus cuidados.
Sinto que deixarei a todos eles tão
somente,
Com as escusas por minhas falhas e
pecados,
A gratidão imensa de quem não ficar para
semente...”
De tanto aparecerem à noite
na praça,
A desfrutar das aragens o
frescor,
As Lopes, com os ares de
sua graça,
Passaram desde logo a compor
A paisagem humana em tal
recanto.
Ali, temperando humor com
fina ironia,
Se
divertem, acrescentando um ponto
Às fofocas picantes de cada
dia.
Mas como elas não escapam
Às farpas dos eméritos
futriqueiros,
De suas trincheiras contra-atacam
Os marmanjos boquirrotos e
bobocas
Fazendo virar o feitiço
contra os feiticeiros,
Que só parolam besteiras e
potocas...
Mexericos e Fofocas
Na praça, frente ao bar,
sobre a calçada,
Rematando mais um dia,
a espairecer,
Pontificam os fofoqueiros da
pesada,
Desde as
últimas luzes do entardecer.
Curtindo a cervejinha bem gelada,
Os eméritos abelhudos,
com humor,
De tudo falam em tais
rodadas ,
Notadamente
sobre as coisas do amor.
Que se cuidem as bonecas
audazes,
Sobretudo aquelas de
mais portentos,
Pois nada escapa às farpas
mordazes
Dos
marmanjos, sedentos de novidades,
Ávidos por
propalá-las aos quatro ventos
Sejam apenas potocas, senão doces
verdades...
Otimismo do Vavá
- Que belo é o meu trono! –
terá gabado,
A sábia coruja, dona do mísero toco
Que para pouso dela foi reservado,
Embora rústico, sem
vida, sem broto...
O dito lembra o Vavá das Lopes,
Com o seu otimismo assaz profundo,
Pois além das filhas de bons
dotes,
Tudo que possui é o melhor do
mundo!
Feliz quem se contenta com o
que é seu,
Valorizando sempre, e de boa mente,
O que conquistou, ou que a sorte lhe deu..
Pois a felicidade nunca bate
à porta
Do eterno e amargurado descontente,
Para quem nem o céu satisfaz
ou conforta ..
Era uma vez a briosa família dos Pintos
Cuja fazenda
com os Pinheiros confinava
Surgindo entre ambas alguns conflitos
A respeito de uma cerca que demarcava
A linha divisória das duas propriedades.
Foi por causa dessa desavença comezinha,
Que os
Pinheiros surraram os ex-confrades
E ainda
os tacharam de homens galinha...
Então o chefe dos Pintos, um tanto humilhado ,
Veio a trocar
o nome que sua família tinha
Para Cangussu,
bicho valente e retado
Mas essa
onça pintada de malhas maiores
Cujo nome pavoroso, foi assim adotado,
De certo, não os tornou ferozes nem melhores...
No tempo do pequi
Que me diz do pequi,
minha Senhora?
Perguntou o Dr. Hermes à geraiseira,
Em pesquisa nos grotões,
outrora;
Queria ele saber
se era verdadeira,
A fama do pequi como afrodisíaco;
E ela, que uma ninhada de filhos
tinha,
Respondeu pronto, com ar
convicto:
No tempo do pequi,
sempre que vinha
Da roça, meu marido, muito
fogoso,
Já nem me esperava ajeitar
sozinha;
E cada
vez, muito mais carinhoso
Me ocupava depressa, veja lá
o senhor;
Por isso mesmo é que de tão
gostoso
Temos a casa cheia!
Ai, que horror!
A libido e o pequi
O pequi, fruto dadivoso, nativo dos Gerais,
De formato globoso e casca grossa,
Com suas características
essenciais,
É o produto típico, o que
mais possa
Simbolizar o nosso sertão
agreste.
Sua polpa nutritiva
e aromatizada,
Com calorias, de amarelo-ouro
se reveste,
Cobrindo a castanha de espinhos formada;
E a castanha, tal avaro e seguro reduto,
Conserva dentro dela, bem guardada,
A parte mais nobre do
genial produto;
É a amêndoa ricamente elaborada
Com o teor excelso da
afrodisia, que resoluto,
Proporciona vigor e tesão ao camarada...
Imbu x pequi
Lembrando a guerra entre o
cravo e a rosa
O imbu e o pequi, como célebres rivais,
Que se confrontam em emulação
valorosa,
O imbu das Catingas e o pequi
dos Gerais.
São produtos nativos e
fecundos da região;
Ambos integram a dieta dos sertanejos
Para propiciar-lhes sustança,
vigor e tesão
Ao estimularem a pulsão vital
e os desejos...
Consta que houve um
acordo de cavalheiros,
Para não se plantar imbu na terra
dos Gerais,
Nem pequi nos domínios dos catingueiros...
E assim selaram a
saudável convenção.
Respeitando, desde então, os
direitos individuais
Cada qual medrando na sua
esfera de ação.
Espinosa noventona
Mais
de noventa anos já medeiam
Desde a fundação desta Cidade altaneira,
Cujos pendores não se
alardeiam
De terra boa, generosa e
hospitaleira.
Salve todas as veras do seu
status social!
Estilo de vida ameno, alegre
e festivo,
Indústrias, informática,
comércio ativo,
Escolas, esportes,
cavalgadas, tudo legal...
Bem-vindos aqueles que de outras plagas
Aqui passaram a conviver
conosco,
E abeberando juntos das
nossas águas,
Como filhos autênticos da terra,
Participam ufanos do seu
progresso,
E de tudo de bom que ela
encerra!...
Receita para fazer chover
Por recôndito e insondável
desígnio do Senhor
Nossa terra boa e dadivosa , em irrisão que espanta,
Tem sofrido estiagens prolongadas – um horror!
Que muitas vezes
calcina tudo que se planta.
Faz dó ver então nossos
campos ressequidos,
Com toda a plantação tenra a
se exaurir sem alento,
Enquanto os animais famintos, tristes e combalidos
Vagam ao leu a procura do escasso alimento.
Dir-se-ia que a terra é
boa, o céu é que não presta,
Mas resta apelar com fé
aos santos protetores,
Para o milagre de chuvas fartas, que na certa
Trarão a redenção providencial
aos sofredores.
Basta que , à moda dos “Sem Terra”, sempre atuantes,
Organizem-se bandos
precatórios, e saiam a rebolar,
Homens, mulheres e
crianças, bandeiras à frente, ululantes,
E rezando, cantando
e dançando, venham a clamar
Por misericórdia aos
nossos pagos tão castigados;
E indo
de cruzeiro em cruzeiro, o madeiro a molhar,
Com potes e garrafas de
agua na cabeça. carregados
Por moças
saradas de biquíni, a pele nua
a queimar,
Certamente se abrandará o desdém
da natureza;
E ao chegar o séquito à
cruzinha de Amélia, a Santa,
O céu já estará pingando, e
com toda certeza
Tudo voltará à vida que nos conforta e nos encanta...
Ícones sertanejos
Eis
os Ícones valorosos do meu Sertão,
Mandachuvas
cada qual a seu jeito,
Um
guerreiro, o outro poeta, pois então,
Adversários
políticos e amigos do peito:
O
Coronel Levy, sempre empolgante,
Com
rasgos de bravura e generosidade,
E
Cangussu de boa paz, mas vibrante,
Cada qual encarnando a sua cidade,
Uma, Monte Azul, o antigo Tremedal,
Outra, Lençóis do Rio Verde, a lendária,
Atual
e pacífica Espinosa, cidade rival,
Mas irmã fraterna, que foi tributária
Da
comarca criada na cidadela original
Da
temida e famosa Maria Rosária.
A Estiva
A fazenda da Estiva, - que
era longe demais,
Foi o próprio paraíso
terrestre, um regalo.
Ficava num vale verde, nos
confins dos Gerais
E a gente ia lá, de férias, viajando a cavalo.
O estirão durava
dois dias, com chuva ou sol,
Mas ali morava a avó Carlota, que na sua lida
Nos proporcionava tratamento
de escol
Com atrações
inesquecíveis, alegria e vida
Mas os tempos passaram e o
mundo mudou;
Voltando anos depois àquele
sítio encantado,
A decepção - que horror! -
quase me matou.
Nada se preservou do
saudoso Eldorado:
A casa senhorial, a
chácara, o monjolo
E tudo mais agora são páginas do passado!...
Lembranças caras
Breve, ou mais tarde, como
espero,
Partindo desta vida, fatal e
sem alento,
Ao deixar este mundo
sedutor e belo.
Não farei falta, em nenhum
momento,
A quem quer que seja,
que aqui fica.
E sem saber qual seria o meu
destino,
Mas sem o medo que a alma
petrifica,
Seguirei em frente tal indômito
peregrino.
Nessa longa viagem na estrada
do poente.
Rumo a páramos de que cristão
algum voltou,
Levarei lembranças caras e
especialmente
Da vida que levei com a doce
companheira
Que tanta felicidade me
proporcionou
Com dedicação e durante a
vida inteira.
Eclesiastes
O tempo é imemorial , e o espaço infinito!
Entre
as brumas indevassáveis da vida,
Vê-se que tudo aquilo que já foi dito
Sobre o homem e sua aptidão presumida,
É como uma gota d´agua no
oceano,
Eis que para tudo neste mundo,
sem exceção
Rege uma ordem estabelecida de plano
Desde os primeiros tempos da criação.
Vaidade das vaidades, tudo é vaidade!
Não há nada de novo debaixo do sol!
Disse o Eclesiastes, e esta é
a pura verdade.
Por mais que o homem possa em
seu mister
Realizar, presunçoso, como ente de escol,
Jamais
dará a vida a um filho sem a mulher...
..
Tudo passa
Nesta nossa vida severina
tudo passa,
Tudo mais cedo ou mais tarde
se encerra,
Seja na bonança ou na
desgraça,
Tanto na santa paz, como na guerra...
Tudo é festivo nos dias de venturas,
Mas como não há bem que
sempre dure,
Também nos momentos
de agruras
Não haverá mal que sempre
ature...
Na alegria, assim como na
tristeza,
Com a nossa cruz ou a nossa
espada,
Lutemos até ao fim, e com
certeza,
Ainda que cobertos do pó da estrada,
E com os arranhões de toda
aspereza,
Hosana!
Alcançaremos a coroa dourada!...
Cronos
Implacável é a marcha do
tempo,
Esse monstro criativo e voraz
Que voa célere nas asas do
vento,
Indiferente a tudo aquilo que
faz!...
Ninguém consegue deter a ação
Desse velho sempre renovado e audaz,
Que consome tudo de roldão,
Assim na guerra como na paz.
Embalando os sonhos e ilusões
da vida,
A dança das horas, alegre
e fugaz,
Festeja todo esforço de luta renhida
Em nossa busca da sonhada
felicidade.
Mas nessa luta insana e
resumida,
Tudo se desvanece ao pé da eternidade...
Minha eterna namorada
Ai, como você era linda, tão
bela!
Com toda a graça genuína da
flor
E a pureza sem jaça da
donzela
Fadada, sim, para as carícias
do amor.
Na intimidade de um amor
fecundo
Com a alegria de alma e coração,
Juntos, para o prazer imenso,
profundo,
Celebramos a vida com glória e unção.
E desfrutei de todos os seus
encantos,
Feliz desse privilégio,
e com
elação,
Ao embalo de suaves acalantos.
Que possa você ter a mesma evocação
De tudo de bom, que sem dor
nem prantos
Auferimos em doce e
inefável comunhão.
Néctar dos deuses
Os
vinhos, seja o Porto, ou o Lacrima
Christi,
Generoso
moscatel das fraldas do Vesúvio,
Têm
a virtude e a magia de alegrar o triste
Com
o sutil buquê do inebriante eflúvio
Emanado da essência de sua composição.
É o néctar dos deuses, - bendito seja!
Que dos mortais revigora o coração
E dá euforia a todo aquele
que almeja
Momentos de prazer,
alegria e elação.
Mas, como quem veleja em mar
profundo,
Sujeito a todos os perigos da navegação
Ao erguer a sua taça, - Evoé!
- consciência!
Não venha a desmoronar-se como beberrão,
Ao ultrapassar os limites da
prudência.
O regalo da vida
O prazer é pecaminoso?
Ora, quem disse?
Se Deus, tão judicioso,
Acaso consentisse
Nessa balela
à-toa,
Por que iria
Fazer a vida tão boa?
O prazer, seja ele qual for,
É o regalo da vida;
Tanto nas práticas do amor,
Essa coisa apetecida,
Como na ação divertida
Do lazer ou do labor!
Quem disso duvida?...
Expulsão do paraíso
Reza a Bíblia que em era mui primeva
O Senhor Deus onisciente e legal
Criou os nossos ancestrais
Adão e Eva,
E os colocou no paraíso
terreal.
Criou-os à sua imagem e
semelhança
E tudo ali, com uma proibição
somente,
Foi-lhes dado, para que sem tardança
Povoassem a terra amplamente.
Todavia, sob o jugo da volúpia
- coitados!
E instigados pela serpente tentadora,
O livre-arbítrio de que foram dotados,
Permitiu-lhes a aventura
pecadora.
E na metáfora do pecado original,
Só por terem comido do fruto
proibido,
Da árvore da ciência do bem e
do mal,
Foram expulsos do éden, graças
à libido...
Mas, como o bicho homem seria capaz
De multiplicar-se, povoando o mundo,
Sem possuir a mulher, como sempre
se faz
Na prática prazerosa do amor
fecundo?
Decerto, se outra opção fosse
adotada
Nos planos divinos e geniais
da criação,
Para o bicho homem, sem a sua amada,
A vida não teria mais
a grande atração!...
A saga do pecado original
Em si mesmo, qualquer que
seja ele,
O prazer, mesmo o sensual,
não é pecaminoso;
Até o erotismo é dádiva superfina daquele
Que, generoso, paternal e todo poderoso,
Criou o homem à sua imagem e
semelhança;
E ao levá-lo com Eva ao
paraíso de delícias,
Ordenou: crescei e
multiplicai-vos sem tardança,
E povoai toda a terra, sem indicar as primícias,
Do conúbio que se tornaria sacramental.
Mas, seduzida pela serpente, para
as carícias,
Eva foi com muita
sede ao pote, e afinal,
Ao comerem do fruto proibido,
nossos ancestrais
Foram expulsos, sim, deste paraíso terreal,
Mas legaram gerações às águas lustrais...
Obs. - Água lustral – a água sagrada do batismo, que
os antigos obtinham extinguindo-se
na água comum um tição ardente tirado da pira dos sacrifícios.
.
Himeneu das virgens
Outrora as moças se casavam puras
E cabia aos eleitos do seu
coração
Iniciá-las na vida conjugal, e
a ventura
De possuí-las em primeira mão.
Nas primícias do amor
verdadeiro
E
sem reservas entre os nubentes
O
jovem, com o privilégio de ser o primeiro
Nas carícias e no gozo mais
fremente,
Ardia ávido e impetuoso por ensinar
E a virgem cândida e docilmente
Ansiava por aprender a arte
de amar.
Então as portas do paraíso se
abriam
Para eles, festivamente, de
para em par,
E mais venturosa a
vida não teriam.
Mulher sem alma
La donna é móbile..
Verdi
Deus
criou o mundo, e sem mais tardança,
Inventou
Adão, nosso lendário ancestral.
Ao
fazê-lo, à sua imagem e semelhança,
Usou
do barro da terra, barro bom e legal.
É o
que dizem as sagradas escrituras,
Nas
páginas do Gênesis, mui claramente.
E
pronto o boneco das humanas criaturas,
Para
aperfeiçoar a sua obra, docemente,
O
Senhor deu-lhe nas ventas a soprada,
Que
lhe infundiu a alma generosa e boa.
Mas
o Criador viu que não era recomendada
A
Adão uma existência solitária, à-toa,
E
mandou-lhe um sono profundo, reparador
Retirando-lhe
uma costela, e sem demoras,
Fez
dela o belo corpo de Eva, - um amor!
Para
sua companheira de todas as horas.
Mas
uma vez pronta a boneca, - que pena!
O
Senhor se esqueceu de dar-lhe a soprada
Que
lhe infundiria uma alma boa e serena
Como
aconteceu com Adão seu camarada..
Ainda
assim, empenhando-se a fundo
O
homem busca a posse da mulher amada
E
não a trocaria por nada deste mundo,
Embora
seja fascinante, mas desalmada...
A laranja e o laranja
Salve! a laranja,
essa fruta deliciosa
E suculenta, que tanto gosto
dá à gente.!
Mas esse cara de ação assaz
duvidosa
Que disfarçado, e nem sempre inocente,
Presta-se, docilmente,
a jogadas malsãs,
Como lacaio submisso, que tudo arranja,
Segundo os planos de corruptos Renans,
Só por ironia
é chamado de laranja,
Pois fazem o papel de
falsário matriculado
Ao compor firmas abjetas,
lesivas e sujas
E ajudando a lavar
o dinheiro roubado.
Por certo, com suas
vitaminas, a boa fruta
Não merecia nem merece de forma alguma,
Dar nome a
esses descarados filhos da puta...
Ode ao caloteiro
Quem parte desta para melhor,
Batendo as botas ou abotoando
o paletó,
Conforme a vida que tenha
levado
Neste mundo vário e
complicado,
Ou vai, lépido e fagueiro,
para o céu,
Ou vai, macambúzio, para o
beleléu.
Para o céu, quem andou bem,
fraterno,
E para as profundas do
inferno
Todos os salafrários e
caloteiros,
Vermes peçonhentos, degenerados
Que com desfaçatez, em golpes
certeiros,
Dizendo-se honestos e
alinhados,
No fundo são parasitas
verdadeiros,
A explorar os incautos e menos avisados...
O ciclo da vida
Ao cabo de mais um dia de
esplendor,
O astro-rei soberano, mas já
broxante,
Declina no horizonte, perdendo vigor,
E mergulha no ocaso num
instante.
Então a noite cai serena,
lentamente,
Sobre a vastidão emudecida
E uma brisa
camarada, docemente,
Envolve toda a natureza
entorpecida ;
Um manto de estrelas
cintilantes
Cobre a noite aos poucos enegrecida,
Como miríades de faróis
distantes.
É o mistério da vida
sempiterna,
Que não se sabe como teria
começado,
Nem tão pouco como um dia se
encerra...
Símbolo da sabedoria
Laude domum
sicut stinge -Daj
Quem gaba o toco é a coruja,
Reza o velho adágio popular;
E eu vos direi, antes que
surja
Alguém que venha a duvidar,
Da justa razão desse
conceito,
Que mais vale louvar o que é seu
E tratar, com amor e
respeito,
As boas coisas que Deus lhe deu.
Que cada qual faça a sua parte
Contentando-se com o
suficiente
E possa louvar, com engenho e
arte
Os dons deste mundo encantador
Paraíso de delicias, sonhos e
venturas,
Concebidos por obra e graça
do Criador.
Giovane Afrodite
Não há, nem pode haver,
Em todas as manifestações da
natureza,
Coisa mais preciosa de se ver
Do que a incomperável beleza
Dos seios túrgidos da vestal menina;
São os pomos virginais do
jardim de Alá,
A compor a escultural criação
divina,
Plena de harmonia e perfeição sem par,
E na visão garrida dessa obra
prima,
Os pomos divinos do jardim de
Alá,
Mais fulgurantes que uma joia
superfina,
Deslumbram e fascinam a
quantos,
Ao reverenciar a obra genial do Criador,
São acorrentados, submissos a
seus encantos.
Aquilo roxo
A escalada da mulher na
presidência
Foi recebida com badalada
louvação,
Destacando-se o fato de tal ocorrência
Inaugurar, desde já, a feminil gestão.
Frágil também é a curul presidencial.
Isto posto, é bom e justo
assinalar
Que, aos nossos brios,
tal conquista, afinal,
Pouco ou nada veio a
acrescentar.
Homens e mulheres são quase iguais
E capazes, até, de algo realizar
Na vida, em prol de
acalentados ideais
Na verdade, sabemos que
esse colosso
A que todos chamamos de sexo
frágil
De fato só não tem aquilo
roxo...
Casar ou não casar
Disse o desinfeliz sobre o
matrimônio
Firme, de papel passado, mas fracassado:
Ainda que me seduza outra vez o Demônio,
Juro não voltar a ser assim
acorrentado!
E quanto ao casamento
proclamou,vejam só,
Que para quem gosta de coisa
ruim,
Não há nem pode haver,
nada melhor.
E mais que convicto, indaga, por fim:
Por que terá o incauto que casar-se
Desde que há por toda parte
tanta corda
Para um homem livremente
enforcar-se?
Todavia, o cara não perde por
esperar
Porque a gostosona, sempre
tentadora,
Como ela, em todo mundo,de fato não há...
Depois de velho, ermitão...
Nada há de mais nobre e
edificante,
Que a lisura autêntica de alguém
Ante a sociedade de que é
integrante,
Seja o rico ou um mero João-ninguém.
O farisaísmo aviltante a que
se recorra,
Não transforma o vício em virtude,
Não torna santa
nenhuma camorra.
Nem sequer ameniza mascarada
atitude;
Assim como a zinha que não
mais serviria,
De afrodite ou barregã, para o culto do amor ,
Torna-se piedosa devota da
Virgem Maria,
Também, depois de velho o poltrão,
Cansado de tanta e grossa patifaria,
O pobre Diabo vira...
ermitão!...
O cordelista
Ora veja, caro leitor,
Não sou nordestino,
Nem tão pouco trovador;
Mas confesso que estimo
A boa arte do cordel.
Assim, vamos começar:
Meu nome é Daniel
E agora, só pra variar,
Estes versos aqui vão,
Para meu apreço mostrar,
Às coisas do nosso Sertão...
Pois tudo é Brasil,
Nossa Pátria amada,
E gentil entre outras mil!...
A linguagem do cordel
Quem vai fazer cordel
Terá antes que entender
Que isso não é coquetel
De versos à toa, sem valor.
Ao invés tem tudo a ver
Com o caráter e o humor
De um povo valoroso
Nascido para lutar
E sempre generoso;
De paz com a vida
No bem-bom ou no pesar
Vai em frente na sua lida.
È literatura popular,
De nordestino valor
De quem sabe cantar
Com altivez e vigor
E seus males espantar
Com as tramas do amor
E mesmo sendo a vida severina
Canta com humor a sua sina...
Mateus, primeiro os meus...
Mateus, primeiro os meus, depois
os teus;
Segundo esta máxima dos afoitos
sedentos,
Das coisas boas e dos bons
momentos,
Só restaria aos outros o que sobrasse aos seus.
Esta pretensão acintosa não
pode vingar,
Contra o princípio moral da
equidade
Que prioriza o direito à
mesma oportunidade
A todos os que a ela possam se igualar.
.
Todavia, a prevalecer o suposto
direito,
No caso de perdas nas coisas e nos eventos,
A prioridade também caberia aos avarentos
Completando o sentido de tal preceito.
Seja como for, capciosa é
a soberbia
Dos que em tudo querem levar vantagem,
Como donos da enchente, com a
coragem
De dourar a pílula de sua ousadia ...
Nefanda trilogia
A grande urucubaca, que
deprime e reduz
A pó-de-traque qualquer
sujeito, que por sinal,
Procura dela fugir como o Diabo da Cruz,
É a nefanda trilogia do
velho, pobre e banal.
Decerto ser idoso não é
defeito, ou pecado;
E não sendo jovem como foi, traz saudades,
Mas ser velho forte como se espera - Deus louvado!
É curtir a vida com amor, charme e prioridades.
A pobreza não pesa tanto, embora preocupante
Se somos parcos e espartanos, sem veleidades
Mesmo velhos podemos viver em
paz confortante
Mas ser banal é o fim da picada,
é a pior situação,
Inda mais sendo velho e pobre,
formando a trilogia;
Que determina a completa ruína, sem remissão...
O orgasmo do corrupto
Os nossos políticos estão mesmo
convencidos
De que o Brasil não tem jeito de se salvar;
Está nas mãos de safados e
ladrões enrustidos
Diplomados na arte e ciência
de roubar...
Assim sendo, esses pilantras
despudorados
Alvitram: Por que não tirar o máximo proveito
De tudo, se fomos eleitos senadores e deputados?
Então, pondo a mão na massa, com
arte e jeito
Os trêfegos parlamentares
tipo “waldemar”
Armaram o nefasto esquema,
quase perfeito,
E as coisas fluíram como vieram a planejar;
E afinal, no ápice de sua carreira,
um rasgo.!
Esses congressistas
corruptos vieram a festejar,
Refestelados e descaradamente, o seu orgasmo!...
Mas afinal.a vaca foi para o brejo,
E alguns
corruptos para a cadeia...
Instante de Belo
Horizonte
Instante silencioso de Belo
Horizonte,
É primeiro de janeiro, e a tarde
Se desvanece num torpor dominante
Em clima de recordações e
saudade
Como capital eleita do povo
mineiro,
Desde Aarão Reis, seu
construtor,
Seu belo nome augusto e
alvissareiro
Simboliza um futuro
promissor.
Inda hoje, já adulta, és
cidade menina
Cheia de graça,
encantamento e vigor,
És o farol cintilante que ilumina
Os caminhos alcandorados das
gerais
Das Minas Gerais, altiva e
fagueira,
Na busca e defesa de seus
Ideais...
Caducando
Quando eu lelé da cuca ficar,
Se ficar,
Ninguém terá nada com isso.
Por isso,
Vamos logo estabelecer
Pra valer:
A culpa cabe aos neurônios já apagados,
Coitados.
Serei inteiramente livre para
esmar
E errar
A meu talante exclusivo,
E sem aviso.
Posso até fazer bobagem,
Sem pajem,
Ou seja, errar sozinho, sem ninguém.
Amem.
Alegra, ou não alegra
Está tudo combinado, é a
regra,
Que não podemos mudar.
Saravá!...
Dies irae
Se não for antes, no dia
do juízo final
Pretendo bater na porta
principal
Do céu, pedindo licença pra
entrar.
Se São Pedro o ingresso me
negar,
Cabe-me explicar-lhe, entretanto,
Que se realmente não fui
santo,
Tenho, porém, algo a meu
favor,
Eis que vivi em função do
amor,
E que não regateei a minha
atenção
A quem quer que nesta vida
Tenha a mim
aberto seu coração.
Amar e ser amado não é má
ação.
Pecado é prejudicar o próximo
Ou negar-lhe um átimo de sua
afeição.
Amar a terra
Ama o teu torrão natal para valer,
Como sempre amaste a nosso Deus,
Pois foi ela o berço que
te viu nascer;
E mesmo que, lembrando Odisseus,
Vieste a perambular neste
mundo vário
A procura da própria identidade,
Ou de um lugar ao sol, de um ideário,
Sonhado com própria felicidade,
Ao alcançar alhures a coroa dourada,
Simplesmente não esquece a
terra natal
Dedicando-lhe a glória da tua jornada...
Feliz é aquele que
lutou, venceu, e afinal
Reverenciou o berço em que nasceu
Sob o signo da esperança, do
amor e do ideal!...
Planeta Terra
Rolando sem cessar nas
amplitudes siderais,
Sob a tutela infalível do
nosso Astro-Rei,
Em ciclos cósmicos precisos e
eternais,
Junto a tantos outros planetas de sua grei,
A Terra, em órbita perene e
imutável,
Destinada aos confins da
eternidade,
Guia-se por mecânica de
precisão notável,
Desde a Criação pela divida
Sumidade.
Alinhada a essa fraternidade de astros,
Na ordem universal com
harmonia e equidade,
Sem discrepâncias, sem descanso
ou rastros,
Embora seja dos menores entre os seus,
Tem o privilégio de ser planeta habitado
Pelo homem, à imagem e
semelhança de Deus1...
A doce companheira
A fome, a sede e mais a erótica pulsão
Que tanto incitam as funções
vitais,
De modo terminante, sem
exceção,
Notadamente entre nós, os
racionais,
São apelos irrecusáveis da
natureza em flor,
Que contemplam todos os animais.
Mas, para coroarmos
de paz e amor,
Os prazeres da mesa e das
lides sexuais,
Ao varão será sempre
fundamental
O adjutório da parceira louçã e fagueira,
Capaz de realizar tudo de bom
e por igual;
É que, nesta vida boa, mas
passageira,
O homem não se completa,
afinal,
Sem o concurso da doce
companheira!...
Amar o
belo e bom
Neste vasto mundo, tudo que é prazenteiro
Vem a ser proibido, engorda
ou engravida,
Assim proclama o zangão brejeiro
Sobre o amor livre e
o doce elixir da vida...
Que diabo me importa o tecido social,
Se é apenas de minha própria felicidade
Que pretendo ocupar- me, em
especial?
Portanto, menos restrições, e
mais liberdade!
E proclama, afinal, o machão, com ar convicto:
Se tudo que é belo é obra do onisciente
Criador de todas as coisas,
como acredito,
Desfrutar do belo e do
bom, como é evidente,
É também uma forma de
render culto irrestrito
A Deus pai, generoso e onipotente!...
Para a filha da
mãe
Você, menina, não se fez por acaso,
Nasceu de um encontro furtivo e criador;
Ao embalo de carícias sem prazo,
Como fruto abençoado de proibido amor.
Eis que cresceu e se desenvolveu,
Formando sua própria
personalidade,
Com o afã de quem amanheceu
Feliz, a levar a vida com dignidade.
Louve-se de estar
de bem com a vida,
Com a proteção dos deuses de verdade,
A conjurar os próprios
demônios, querida.
Na senda do seu destino, sem veleidade,
Siga seus passos, cautelosa e decidida,
Airosa e risonha, na busca da felicidade.
Tentação incoercível
Quando Deus inventou este
mundo,
Dentre todas as suas disposições,
Criou o homem
operoso e fecundo,
Mas estabeleceu duas condições:
A primeira - como castigo
para quem cai,
Terás que viver com o fruto do teu labor;
A outra, a do crescei-vos e multiplicai,
Como prêmio sazonado do
melhor sabor:
Terás a mulher como companheira,
Para as delícias inefáveis do amor.
Mas o varão só a terá a vida inteira,
Se for um herói, capaz o suficiente,
De mantê-la e tolerar toda asneira
Que ela exigirá, tentadora e
convincente...
O cordelista retado
O cordelista
Um especialista
Do cantar sertanejo.
Valente e sem pejo,
É aquele
Que sem ele
A graça falece
E o verbo emudece.
Seu cantar
Vem realçar
As belezas
Apesar das asperezas
Deste mundo encantado
E retado.
Se tudo vai
bem
Como convém,
Bendito seja
Quem peleja
Como o catingueiro
Forte e altaneiro
Que enfrenta a vida
Que é luta renhida
Sem reclamar da sorte
E luta até a morte.
A vida é bela
Para quem zela
Com acalantos
Pelos encantos
Que ela oferece
E não emudece
Pois quem canta
Seus males espanta.
Abotoando o paletó...
Esticar as canelas, batendo a caçoleta,
Abotoando de vez o paletó, ou
a jaqueta,
Na hora fatídica, incerta ou
aprazada
Sem dúvida alguma, é o fim da
picada...
Ninguém escapa dessa dura
realidade,
Tragédia inapelável, feroz impiedade,
Que iguala a todos, fracos e poderosos,
Inda os mais decididos e corajosos.
Sei que quando a minha vez
chegar,
- É pena, - não haverá choro
nem velas
Que sejam capazes, sequer, de
adiar
O momento azado, crucial da
partida.
E nada comigo poderei levar,
Além da imensa saudade desta
vida...
Baú de ossos
Batem-se as botas ao fim da jornada,
E por mais que se apegue a
esta vida,
Você não poderá fazer mais
nada,
Quando lhe chegar a hora da
partida.
Não fique triste ante esta
dura realidade;
E lembre-se que lhe serão
suficientes
Os sete palmos de terra que
por equidade
São reservados a potentados e
carentesl
Como ninguém ficará para
semente,
Todos embarcarão rumo à
eternidade
Onde jazerão esquecidos e para sempre,
A menos que alguém, com amor
e bondade,
Tendo seus ossos guardados num baú,
Ainda lhe reserve um preito
de saudade...
Viagem sem volta
Com a alma sensível do catingueiro,
Ao iniciar a minha viagem sem volta,
Qual ousado e intrépido
caminheiro,
Esquecerei toda mágoa ou derrota
Que em vida também as tive,
bem sei;
Levarei apenas a doce
recordação
Dos bons momentos que
desfrutei
Com muita alegria e paz no
coração.
Mas se inconsciente eu tiver maltratado
A desafetos ou a amigos de
eleição,
Penitencio-me pesaroso, desalentado,
Pelo dissabor involuntário
cometido
Na vã ilusão de só ter o bem
praticado
Antes desta boa vida ter
partido...
Trovas
Evoé! Ergo a minha taça
A Baco, deus do vinho,
Festejando a nossa raça.
Com muito amor e carinho.
Mas, quanto aos corruptos,
Sejam deputados e senadores,
Para o diabo esses putos,
Ladrões e aproveitadores...
Deus salve um Brasil radiante
De paz, serenidade e harmonia
Livre dessa corja degradante
E pleno de paz e alegria!
O estigma cruel
Na mulher, nada fere tanto
como a mutilação
Na parte mais sensual do seu corpo em flor;
Onde se localiza todo o poder
de sedução
Que leva o homem ao amplexo do amor.
Felizes são aquelas bem
nascidas , saradas,
De corpo esbelto, cheia de
graça e tentação,
Prontas para serem possuídas
e bem amadas,
No doce embalo e todo vigor
da gamação.
Mas por azar, há as que foram sacrificadas
Nos pomos mais lindos do
jardim de Alá,
Para outras, embora livres e intocadas,
Sem charme, e para
quem nada acontece,
Resta ainda o velho adágio segundo o qual
Quem ama o feio, bonito lhe
parece...
A mulher bem feita
È próprio da mulher o sorriso que nada
promete e permite tudo imaginar.
Carlos Drummond de Andrade,
Quem não se extasia diante da
beleza
Estonteante de uma mulher bem
feita?
Essa obra-prima e excelsa da
natureza,
Dotada de curvas na tessitura
perfeita
De um corpo por mão
divina cinzelado,
Que tem o poder de
subjugar seu oposto
Fazendo-o cativo, submisso,
enfeitiçado,
É o supra-sumo, o ápice do bom gosto.
Se ao homem nada
é tão importante
Como essa dádiva generosa do
Criador,
Que não perca tempo, nem um instante,
Para possuí-la com toda
gamação e vigor
Certo de que ela também
anseia e bastante
Por sua fatia no jogo
inefável do amor...
A mulher de barriga
Quando se topa com a mulher
de barriga,
Conseqüência do que fizeram na cama,
Vislumbra-se uma transa aquecida
No inefável embalo de
quem ama.
Para o gozo inigualável e
tentador,
No auge dessa união
festiva - hosana!
Fundem-se dois corpos com
todo vigor,
No inefável embalo de quem ama...
E assim, com o
que fizeram na cama,
Cúmplices e sem reservas ou pudor,
No inefável embalo de quem ama,
Vieram a cumprir o texto bíblico - saravá!
Do crescei e multiplicai- vos
pelo gozo tentador,
Vital e tão prazeroso que
como ele não há...
Don Juan gabolas
Que diabo me importa o tecido social?
Dizia de si mesmo o Don Juan gabolas:
O que me
interessa nesta vida, em especial,
É o prazer do sexo livre, sem enrolas!
E arrematava com jactância
redobrada:
Sempre que nada de
melhor tenho a fazer
Vou ao encontro da mulher amada,
A compartilhar, juntos, tesão e prazer...
Mas tudo soa como prosa do faroleiro loquaz;
No
fundo, se o falastrão tivera de fato tanto furor
Como apregoava, talvez já não fosse capaz
De manter acesa a lamparina do amor
Por falta do azeite
que anima e dá sustança
Ao cabra macho e porreta, sim senhor!...
Guizo
no pescoço do gato
Andavam assaz apavorados os
pobres ratos
Pela inacreditável
esperteza e crueldade
Dos seus vorazes e velhos
inimigos - os gatos
Tanto os do campo, como os da
cidade.
Eles surgiam solertes, traiçoeiramente,
Sem dar-lhes sinal de sua aproximação,
E devoravam-nos com rabo e tudo, de repente
Causando a todos muita tristeza e comoção.
Era mais que preciso buscar, a todo vapor,
Um meio eficaz de contornar a
traição,
E em reuniões acaloradas
vieram a propor
Várias moções, sendo aprovada
por aclamação
A de pôr um guizo no pescoço do gato comedor
Mas, quem seria capaz de cumprir tal missão?
Quanto vale uma saudade...
Esconjuro aquele que, como
dizia,
Foi feliz na vida e não sabia...
Mas, quem ignorou a própria
felicidade,
Essa dádiva da divina
bondade,
De fato não teve uma vida
ditosa
E, movido por presunção
enganosa,
Ao desprezar o que Deus lhe deu,
Passou pela vida e não viveu!
Para o insaciável ou descontente,
Que só festeja aquilo que não tem,
Vindo a alcançá-lo, ainda inconseqüente,
Pelo vezo contumaz da
intemperança,
Encara o suficiente com
desdém,
Por obra e graça da própria
ignorância,,,
Modernistas
Salve o poeta consagrado, de
boa raça,
Modernista genuíno e de elação,
Que transmite ao leitor
sutilezas e graça
Em páginas inspiradas, de
fina emoção.
Todavia, outros se metem a versejar
Também sem metro, nem a
boa rima,
Mas com seus botões passam a devanear
Compondo tudo em linguagem sibilina,
Se é para o próprio deleite, tudo bem.
Mas quando se faz necessário adivinhar
As coisas que no aranzel se contem,
Perde fosfato e tinta quem pretende
Transmitir ao leitor ocupado e arisco,
As idéias vagas que só o
autor entende...
A
mulher bonita e o outro...
Ela
tinha os olhos grandes e bonitos, de cabra tonta.
Guimarães
Rosa.
“Quem tiver mulher nova e bonita
Deve de trazê-la debaixo de olho...”
Disse Guimarães Rosa -
sentença erudita.
A quem não quiser pôr a barba de molho,
Credo! Bastaria desposar mulher feia,
Salvando o privilégio da posse enxuta;
Pois, não tendo em casa uma sereia,
Ninguém correria o risco de uma disputa.
Todavia, se a mulher falseia e prevarica
Saindo
com o outro, melhor é cedê-la
Toda,
todinha, ao gajo que com ela
fica...
Mas diz o traído mantendo
a zinha,
Para consolar-se e espairecer, fazendo
fita:
Puta por puta, fico com a
minha...
A cama na comédia humana
As mulheres sempre exploram a sensualidade
Para se tornarem cada vez mais atraentes;
E na flor e
esplendor de sua feminidade
Tramam para enredar incautos e inocentes.
E todos sucumbem gostosamente
a seus atrativos:
Braços nus, busto
airoso, traseiro arrumado,
E mais os apelos tentaculares e lascivos,
De um colo em decote insinuante e ousado.
Muitas inda usam joias
para mais enfeitiçar,
E seus vestidos colantes, como se a despissem
Revelam o corpo na
sua atração sem par.
É o doce sortilégio que leva todos à cama
Para o seu papel
vital desempenhar
No inefável mistério
da comédia humana...
O São Francisco
Não há nem pode haver quem, deste outeiro,
Ao ver de perto o Nilo Brasileiro,
Não sinta, como eu,
A emoção desse deslumbramento
Que empolga e eleva a alma, num momento,
A esplêndido apogeu.
Aqui vim ter, meu doce rio amigo
Para te ver,
sentindo-te comigo
Como sempre almejei
Desta tua barranca tão famosa
Contemplo a atua grandeza portentosa
Que descrever nem sei.
Rompendo em Casca d´Anta, murmuroso,
És bravo já, oh! Rio impetuoso,
Que avanças para o mar.
Nascendo já com ares de gigante,
Caminhas firme, altivo e dominante,
Como rei milenar.
De aquém, pelo planalto extenso e vário,
Vens rolando em socalcos de calcário
Em rumo do sertão.
Coleias pelo dorso da chapada,
Qual sucuri gigante e prateada
Na
imensa solidão.
Mil correntes penetram-te a entranha;
O das Velhas, o Verde, o Carinhanha
Teus tributários são.
Em tuas águas desliza o surubi,
Em tuas margens verdeja o buriti
De espalmado pendão
Em Paulo Afonso, esplêndido
acidente,
Despencas com fragor a tua corrente
Do imenso pedestal.
E espumas, com estrondo, no granito,
Bramindo, como em cósmico conflito,
No salto colossal.
Do Amazonas não tens a calha imensa
Nem a forte e
brutal floresta densa
De
rica seiva plena.
Não tens do Minho luso o curso ameno,
Os castelos feudais do velho Reno
Nem pontes como o Sena.
Em tuas águas, porém, rola a memória
De mais de quatro séculos de história
Honrada e varonil.
E és, na Pátria
amada do Cruzeiro,
Entre todos os rios o primeiro,
Orgulho do Brasil
Na ousada tessitura das
bandeiras
Uniram-se as terras brasileiras
Ao longo da tua pista.
E foste, da unidade nacional,
O fator soberano e natural.
Na fase da conquista
Esta lua mineira
em tua corrente
Refletida, poética e dormente,
A mim me faz pensar
Na calejada mão dos teus vaqueiros
No sofrimento destes barranqueiros,
Heróis do labutar.
Cansados já de tanta e vã peleja
Despegam-se da riba sertaneja
E emigram para o sul.
Limpa deles, Senhor, as cicatrizes!
Dá que vivam, meu Deus, aqui, felizes,
Sob este céu azul!
Embora, a força do progresso, um dia
Irrompendo por toda a tua bacia,
Há de trazer aqui
Os elementos de felicidade:
O
pão, a paz e a tranquilidade
Que em teu vale não vi.
Deixa-te, pois, estar e não lamentes
Que o futuro repousa em tuas
vertentes
Oh! meu rio cristão.
Serás, neste planalto de verdura,
O rio da esperança e da fartura
Do homem do sertão.
Como se vê, este
poema não é apenas uma composição antológica, que se expressa e
encanta na feição de sua bela e inspirada tessitura, transmitindo ao leitor a
imagem viva dessa dádiva da Natureza, tão majestosa em si mesma, e tão generosa
nas suas potencialidades.
Se esse admirável
poema fosse tão somente o hino de amor
ao Velho Chico, ao louvar e festejar a glória de sua existência milenar,
a suntuosidade de seu porte sobranceiro, a virtuosidade de seus saltos de vigor
e energia e a impetuosidade de suas águas a rasgar, soberano, o território do
sul ao norte, para gerar vida e
fecundidade até lançar-se ao mar, sendo testemunha ocular da História de
um povo – já teríamos a consagração do
autor como poeta de primeira água.
Todavia, o autor,
além de expressar-se como poeta genuíno, teve a visão profética ao antever um futuro promissor para as populações
ribeirinhas do Velho Chico, ironicamente ainda deserdadas da sorte, por
carência de meios para o aproveitamento
dos seus recursos hídricos. Eis que
exorta:
Deixa-te, pois, estar e não lamentes
Que o futuro repousa em tuas vertentes
Oh! meu
rio cristão.
Serás, neste planalto de verdura
O rio da esperança e da fartura
Do homem do sertão.
Segundo poema
Vejamos agora, do
grande e insuperável Machado de Assis, -
dono de estilo inconfundível e um dos
maiores nomes da literatura da língua portuguesa - o notável poema que chegou a criar a imagem da pessoa à qual
foi inoculada uma idéia visionária, ou a ilusão
de um sonho dourado.
Uma
das mais famosas cortesãs gregas, Friné, formosa em extremo, que viveu no
quarto século antes de Cristo, certa vez, no
festival dedicado a Afrodite,
desfez-se de suas vestes e caminhou totalmente
nua para o mar, diante da
população inteira de Elêusis.
Praxiteles o grande escultor,
achava-se entre os presentes e mais tarde tomou-a como companheira. E
inspirado na perfeição de suas formas
harmoniosas e belas, veio-lhe a inspiração para esculpir
as estátuas da deusa Afrodite (Venus, para os romanos), tendo-a como modelo. Assim, deu
ao mundo obas-primas da arte grega: Afrodite de Téspias, Afrodite de Cós
e Afrodite de Cnido, a mais célebre, com
réplicas no Museu do Vaticano, na Galeria de Arte de Firenze, no Louvre, em
Paris, e no Museu de Munchên.
Ela
foi amante também de potentados
atenienses, dos quais auferiu riqueza, tendo oferecido sua fortuna para
construir os muros de Tebas.
Num
dos julgamentos mais célebres da história, Friné, ou Frineia, foi acusada de
causar a ruína de vários nobres de Atenas. Hipérides, na defesa, lançou mão de muitos argumentos, para
inocentá-la, mas os juízes estavam decididos
a condená-la definitivamente. Então, como último recurso, o advogado dirigiu-se
ao Aerópago, onde se encontrava Frineia
e, num gesto heróico arrancou-lhe toda a roupa, deixando-a completamente nua, diante da multidão atônita
e surpresa. e pasmando subitamente os Juízes deslumbrados.
Foi o Triunfo da Beleza!
Uma
enciclopédia espanhola resume, assim, seu verbete alusivo a Friné: Cortesana
griega del s. IV a. de J.C., famosa por su hermosura, que fué amante de Paxiteles,
al que sirvió de modelo para sus estatuas de Venus. Acusada de impiedad, fué desnudada por su defensor, el
orador Hipereides, ante los jueces, y,
admirados éstos de su belleza, la absolvieron por unanimidad. Este hecho fué
debido a que los griegos creían en la correlación etre la belleza coporal y la
espiritual, y, por tanto, Friné no podia
ser culpable del delito que se le imputaba.
Narrando
magistralmente esse episódio, Olavo Bilac compôs o magnífico poema que se segue:
O Julgamento de Frinéia
Mnezarete, a divina, a pálida Frinéia,
Comparece ante a austera e rígida assembléia
Do Areópago supremo. A Grécia inteira admira
Aquela formosura original, que inspira
E dá vida ao genial cinzel de Praxíteles,
De Hiperides à voz e à palheta de Apeles.
Quando os vinhos, na orgia, os convivas exaltam
E das roupas, enfim, livres os corpos saltam,
Nenhuma hetera sabe a primorosa taça,
Transbordante de Cós, erguer com maior graça,
Nem mostrar, a sorrir, com mais gentil meneio,
Mais formoso quadril, nem mais nevado seio.
Estremecem no altar, ao contemplá-la, os deuses,
Nua, entre aclamações, nos festivais de Elêusis...
Basta um rápido olhar provocante e lascivo:
Quem na fronte o sentiu curva a fronte, cativo...
Nada iguala o poder de suas mãos pequenas:
Basta um gesto, - e a seus pés roja-se humilde Atenas...
Vai ser julgada. Um véu, tornando inda mais bela
Sua oculta nudez, mal os encantos vela,
Mal a nudez oculta e sensual disfarça,
cai-lhe, espáduas abaixo, a cabeleira esparsa...
Queda-se a multidão. Ergue-se Eutias. Fala,
E incita o tribunal severo a condená-la:
"Elêusis profanou! É falsa e dissoluta,
Leva ao lar a cizânia e as famílias enluta!
Dos deuses zomba! É ímpia! É má!" (E o pranto ardente
Corre nas faces dela, em fios, lentamente...)
"Por onde os passos move a corrupção se espraia,
E estende-se a discórdia! Heliastes! condenai-a!"
Vacila o tribunal, ouvindo a voz que o doma...
Mas, de pronto, entre a turba Hiperides assoma,
Defende-lhe a inocência, exclama, exora, pede,
Suplica, ordena, exige... O Areópago não cede.
"Pois condenai-a agora!" E à ré, que treme, a branca
Túnica despedaça, e o véu, que a encobre, arranca...
Pasmam subitamente os juízes deslumbrados,
Leões pelo calmo olhar de um domador curvados:
Nua e branca, de pé, patente à luz do dia
Todo o corpo ideal, Frinéia aparecia
Diante da multidão atônita e surpresa,
No triunfo imortal da Carne e da Beleza .
Apêndice
Abastado cidadão da alta sociedade mandara seu melhor carpinteiro fazer primorosa estante para a biblioteca de sua
bela mansão, na qual seriam exibidos os livros ricamente encadernados, de
lombadas vistosas, com o título da obra e o nome do autor gravados a ouro.
Mas as
prateleiras do móvel se excederam, em espaço, às vistosas coleções já adquiridas.
Por isso teve que encomendar mais tantos centímetros de livros para encher os
espaços vazios...
Por sua vez, este modesto escriba, ao elaborar este
volume com seus poemas outonais, houve
por bem engordá-lo ao final com alguns contos, para que o livro não
ficasse tão magro como um pífio folheto.
Além disso, veio-lhe à mente o velho
adágio, segundo o qual, quem não tem jeito para a poesia, que se contente com a prosa...
E agradece a boa acolhida.
Percalço eleitoral
Logo que foi inaugurado o novo Clube da cidade, a Diretoria nomeou uma Comissão
composta de cinco membros associados, da qual tomei parte, para a
organização de sua Biblioteca.
Era um clube social, não esportivo, mas com muitas
opções de lazer e entretenimento. Além do amplo e bem mobiliado salão para bailes, com palco para espetáculos, e amplo auditório para conferências e palestras,
tínhamos o scotch bar, salões para
bilhares, bingos e outros jogos, tudo
com excelente decoração; e até copa e
cozinha. Por assim dizer, um
Clube completo, que era o orgulho da cidade.
Faltava apenas a Biblioteca, já com amplos
espaços reservados, incluindo
anexos para leitura e televisão. As
prateleiras , de madeira entalhada, e o mobiliário adequado, já estavam prontos. A Comissão
ficou encarregada de receber as doações espontâneas ou em espécie, realizar
eventos artísticos e outras promoções para levantamento de fundos, fazer a
seleção e aquisição de obras de autores de nomeada, nacionais e estrangeiros, e
ainda providenciar a encadernação dos livros
ainda em brochura e a informatização da
Biblioteca.
Havia, portanto, muito por realizar, e a Comissão se
reunia quinzenalmente, à noite. Muitas vezes as reuniões se estendiam como
verdadeiras tertúlias, no curso das quais, se servia o chamado chá literário, com
a participação de outros associados.
O Edgard , membro atuante da Comissão, era um
comerciante comunicativo e muito bem relacionado na sociedade local. Dele podia-se dizer, um cidadão pacífico e
respeitado.
Mas um belo dia ele apareceu-nos no Clube penso de um
lado ao peso de algo volumoso sob a aba do seu jaquetão. Naturalmente despertou
com isso a curiosidade de todo mundo.
- Que negócio é esse Edgard? -
perguntou alguém.
E ele não se fez de rogado, abrindo o seu paletó, para
mostrar um tresoitão, cabo de
madrepérola.
“ O caso é simples e complicado - iniciou ele a sua história - Vocês todos sabem que nunca
fui político. E tenho até certa prevenção contra essa atividade que vem sendo
exercida por velhacos, aventureiros; uma corja de corruptos, que deslavadamente só visam o interesse próprio.
É claro que há exceções honrosas, mas
geralmente as pessoas de bem se esquivam
de competir com essa cambada de aproveitadores que está
por aí e que nos causa
vergonha...
Mas acontece que dei ouvidos a alguns amigos que, numa campanha de renovação do
nosso legislativo, instaram a que eu me candidatasse ao cargo de vereador de
nossa cidade. De princípio não admiti essa idéia. Todavia, tanto me falaram a respeito da necessidade da
moralização dos nossos costumes políticos, que acabei me acedendo, ingenuamente, a essa aventura que, de resto, só está me
trazendo aborrecimentos inaudíveis, além
de despesas imprevistas..”
- Mas afinal, por que esse trinta e oito na cintura, a uma hora dessa?
Que está acontecendo? - inquiriu outro companheiro.
“ Estou arrenegado de dois casos, que seriam apenas cômicos, se não envolvessem
certa dose de tragédia - prosseguiu ele. -
Vejam bem. Uma vez que foi oficializada a minha candidatura, passei a receber apoios que me deram
satisfação pessoal e a expectativa de vitória. Cheguei a me entusiasmar com a
minha suposta popularidade. Mas depois, dentre tais apoios, dois deles só
me trouxeram desapontamento e
preocupações. Acho que caí numa esparrela dos diabos! Estou sendo explorado por um, e ameaçado de morte
pelo outro. Tenho que me defender como posso e
aonde quer que eu vá...
No primeiro
caso, um meu freguês da zona rural procurou-me na loja para dizer, em
princípio de conversa, que adorou a minha candidatura e que todos os votos de
sua família eram meus E a seguir acrescentou
que ali viera para oferecer-me um comício em sua propriedade, na qual
tinha uma venda, freqüentada por muitos amigos da redondeza, eleitores que seguiam a sua orientação... Se eu
concordasse, bastava marcar a data,
preparar o discurso e ele providenciaria tudo mais.. Para animar a festa,
haveria uma cervejada, fogos de artifício e um churrasco. Para isso ele mataria uma vaca...
Na verdade, o tal comício foi um sucesso. Muito
concorrido. Comes e bebes à vontade e muita animação. O cara, jeitoso e falante como ele só, fez até um
discurso, me cumulando de elogios. Só faltou dizer que eu era santo... Mas alguns dias depois da farra ele voltou a
procurar-me na loja, para cobrar o preço
super-faturado da vaca e das bebidas... E entre dentes dizia ter sacrificado o
leite das meninas, pois a vaca era a única que ele possuia...
Caí das nuvens. Fazer o que? Tive
que engolir a seco e pagar a conta.
Mas esse caso não foi o único. O pior veio depois.
Outro freguês, por sua vez, procurou-me depois, com
oferecimento semelhante. Já escaldado e escolado como estava, deixei que o
homem falasse. Disse-me ele que tinha
visto meu retrato e minha plataforma política no jornal, que apreciou o
meu empenho de disputar a eleição e que
desejava apenas colaborar, apoiando os
bons candidatos. Oba! - pensei
com meus botões: até que enfim arranjei um correligionário desinteressado. Ele
não se propôs abater vaca nenhuma para
churrasco, e isso me animou, foi um alívio. Ainda assim, meio desconfiado,
mas precavido e de olho aberto, pedi que me informasse, prèviamente, se haveria alguma despesa que devesse correr
por minha conta. Com surpresa, respondeu-me ele que não, acrescentando apenas
que, se eu quisesse, poderia levar alguns
foguetes, para abrilhantar a festa. Depois dos discursos haveria apenas um forró, de que
o povo tanto gosta, e o sanfoneiro nada cobraria.
Conclui que esse freguês era um homem de boa fé, e
tenho a impressão de que assim procedia, porque algum dia, na loja, eu teria
lhe prestado um favor qualquer, ou mesmo
uma simples gentileza. Como vocês estão vendo, esse caso foi bem diferente do
outro. O forró foi de fato muito animado, tinha muitas moças bonitas e varou a
madrugada...
Mas, por
gentileza e só para demonstrar o
meu reconhecimento, pensando em prestigiar a família do dono da casa, com todo respeito tirei a mulher
dele, (uma coroa até simpática e muito dada), várias vezes
para dançar, sem perceber que
estava causando o feroz ciúme do
marido.. Foi ai que o caldo entornou.
Por causa disso, segundo fui advertido, o ferrabrás, puto da vida, instigado
por fofoqueiros, adquiriu uma pistola para lavar a sua honra tão exigente, e quer me matar!...”
A Flor do
Pântano
Quando recentemente conheci Darliene, uma morena sarada, no esplendor de
seus dezesseis anos, fiquei sabendo que ela era irmã de João Paulo, o garoto
que um dia, cerca de quatro anos atrás, se identificou a mim como trazedor do
almoço para o meu amigo Joaquim, o
carroceiro que me fornecia areia, apanhada do rio, para obras na Jurema.
João Paulo me disse que Joaquim era seu vizinho e
padrinho. E ao referir-e a ele com certa dose de familiaridade e respeito,
convenceu-me do seu caráter dócil e
afável . Eu gostei de seu
temperamento jovial e de sua espontaneidade, e desde então tornamo-nos
bons amigos. De vez em quando na rua, quando eu passava de carro, ele me
acenava e eu parava para cumprimentá-lo
e dar-lhe uns trocados, lembrando-me dos tempos em que, ainda criança, eu também gostava de ganhar
um dinheirinho de algum parente.
Darliene e João
Paulo são filhos de Do Carmo, mas não do mesmo pai. Do Carmo é uma
mulher parda de pele lisa, um pouco
gorda. Ela aposentou-se como desassisada, vive ao léu, perambulando pelas
ruas, e pode-se imaginar que não é dos mais organizados o dia-a-dia de sua
família. Noutros tempos, com os atrativos próprios da mocidade, foi uma
cabrocha arrumada e boa parideira. Mas hoje, inteiramente largada, foi-se o
tempo em que era requestada.
Curioso é que,
apesar de um tanto airada, seu instinto maternal é aguçado, como o das vacas paridas de novo.
Com suas doidices, certa vez me pediu ajuda, porque estaria alguém
tentando tomar-lhe um dos filhos, ou
filha. Na época tranqüilizei-a, garantindo que ninguém podia fazer isso, e ela
se acalmou.
Mas Darliene,
que não recebe dela bons tratos nem tantos mimos, vive mais com a
vizinha, que lhe proporciona o
afeto maternal que lhe falta em casa.
Além de Darliene e João Paulo, Do Carmo tem outros filhos e filhas,
uma ninhada, de pais diferentes e até desconhecidos. A filha mais velha é quem recebe o benefício da
aposentadoria, para o seu sustento e pequenas despesas.
Darliene, dócil e inteligente, de aspecto agradável,
herdou da mãe alguns traços fisionômicos, mas bastante melhorados. É produto
apurado. Morena de corpo esbelto, silhueta elegante, busto bem proporcionado,
lábios e dentes perfeitos, é dona de um sorriso franco e charmoso. No conjunto,
é uma afrodite digna de ser perpetuada no mármore.
Com tais atributos, perguntei-lhe se tinha coragem de
posar nua para a revista Playboy e ela
respondeu que não. Mas deixou escapar um
sorriso enigmático, além do brilho diferente nos olhos, como quem sonha
com algo intrigante, desconhecido e temeroso, mas fascinante... Ela tem
trabalhado ocasionalmente em eventos sociais e
tem queda para isso. E como tal, não passa despercebida dos convivas, de
olho nela.
Apesar de sua plástica feminil e sensual, ela prefere os divertimentos próprios dos
homens. Por exemplo, gosta de jogar futebol e de sinuca, passando horas
acertando as bolas que rolam no pano verde, ao tentar encaixá-las na bolsa. Gosta, também, de tomar banho no rio,
no açude, em contato direto com a natureza, para sentir na própria pele
bronzeada as carícias de uma brisa camarada.
Um mancebo
abelhudo, fanatizado pela perfeição de suas formas, conta que não
resistiu à tentação de ir espiá-la ao banho, de longe, escondido numa moita de
assa-peixe... Com a respiração
entrecortada, viu-a emergindo das águas com a anágua colada ao
corpo...
Certamente, de biquíni faria boa figura numa piscina,
ou na praia, e despertaria os olhares cobiçosos dos homens.. E não se sabe até
quando ela resistiria aos assédios a que
se expusesse.
Do Carmo e
filhos (ela não tem um companheiro permanente) moram numa casa modesta,
em bairro da periferia. No seu ambiente doméstico, com algumas carências e pouco
conforto, falta uma boa orientação e mais autoridade materna no quotidiano e encaminhamento dos filhos.
Enfim, com um comando à matroca, frouxo, o matriarcado não funciona a contento.
Darliene e seus irmãos têm baixa escolaridade, não
gostam de estudar, sobrando-lhes mais tempo para o a ociosidade. Mas, salve-se
o instinto da vida, apesar de tudo.
Eu quis saber quem era o seu pai. Respondeu-me que não
o conheceu e acredita que nunca o viu, nem lhe interessa vê-lo. Mas
disseram-lhe que era filha de um tal de Federal. E, por isso, chamavam-na também
de Federal.
Em tais condições, pode-se dizer que Darliene, bonita,
saudável, de temperamento sereno, sem traumas ou complexos aparentes, é como
uma flor pura e viçosa que nasceu ao acaso, no pântano.
O fato é que, se de um lado o pai sequer tomou conhecimento
da existência da filha, por outro lado ela jamais sentiu a falta dele, isto é,
se praticamente nunca o teve, também não experimentou a sensação de perdê-lo,
ou o desejo de identificá-lo, ou reivindicá-lo.
É provável que
Federal, a exemplo de outros parceiros de Do Carmo, teve com ela, em algum
canto, uma relação libidinosa apenas
instintiva e ao acaso, como acontece
com os animais. Não se sabe onde, nem como, mas o suficiente para
enxertá-la. Nenhum comprometimento disso resultou. E Darliene, nascida
desse acasalamento fortuito,
não teve a oportunidade de qualquer convivência com o pai. E se ela
algum dia chegou a vê-lo, não tomou ciência
disso.
Eu conheci Federal como vendedor de alavancas,
mas não sabia que ele tinha esse apelido. Quem acidentalmente mo revelou foi o
meu amigo Minervino - o açougueiro - que conhece todo mundo. Mas até hoje não
sei qual é o nome próprio de Federal,
nem porque ele ganhou tal apelido.
As alavancas que ele vendia, muito apropriadas para serviços na roça, compunham-se de uma
haste, mais ou menos comprida, de ferro oitavado (a que chamavam de
barra-mina), soldada a uma lâmina de aço temperado, feita de molas de caminhão,
tendo na base o gume bem afiado.
Eram um tipo de ferramenta muito bom, de produção limitada, do tamanho adequado
para abrir buracos; uma especialidade dele (made by Federal) e não se
encontravam à venda nas lojas. Ele mesmo as vendia na rua, ou a
domicílio, a adquirentes habituais -
eu inclusive. Eis porque, para
muitos dos seus fregueses, Federal era
mais conhecido como vendedor de
alavancas.
De certa forma essa ferramenta veio a simbolizar a
eficiência genesíaca de Federal, ao alavancar, na descuidada Do Carmo, um
produto tão bem acabado, embora feito ao acaso.
Não me lembro bem
da última vez que o vi e lhe
comprei a ferramenta, mas isso já faz alguns anos.
Não sei do que
foi feito dele. Provavelmente já morreu. Era um tipo meio desajeitado, rosto ligeiramente
alongado, altura mediana, magro, braços descarnados e rijos, lábios de rebordo, lembrando a boca de peixe, ou uma salsicha fina. Mas boa pessoa.
Quero crer - mas disso não tenho certeza - que Federal
foi o menino que Dinha Nena criou e que
conheci quando eu morava fora. Ele era
então um rapazote calado, quase sempre de pés no chão e calça arregaçada até o meio da canela, de boa índole, meio arredio e muito
prestativo. Servia para dar recados, entregar leite e varrer a casa, além de
outros afazeres domésticos.
Entretanto, por longos anos não me lembrava dele, seja como possível
serviçal de minha mãe, seja como vendedor de alavancas.
Só recentemente, ao conhecer a sua filha, - que saiu mais à mãe, - é que, especulando,
recompus a memória e veio-me à mente sua fisionomia, envolta em considerações
sobre o enigmático sentido da vida e o
imponderável destino das pessoas. Fiquei admirado de ser Darliene sua filha...
Afrodite, a deusa do amor que emergiu das ondas do
mar, segundo a mitologia greco-romana, é o ideal da beleza feminina, e foi descrita na Ilíada com o sortilégio de”transformar
todos os mortais e os deuses pelo desejo”.
Darliene, que nasceu de uma relação sexual, marcada
pelo instinto animalesco de seus pais,
veio ao mundo sob o signo desse ideal de beleza - beleza que decerto não
herdou de seu pai, para tornar-se alvo
do desejo ardente dos homens.
Se ainda é virgem? É provável que não, pois na sua
idade, com os atributos de sua feminilidade, e seus
atrativos sensuais, não lhe teriam faltado, além da curiosidade instigante das donzelas bem
nascidas, os apelos da carne, nem a
oportunidade para uma fugaz
aventura romanesca, e muito menos ainda
quem lhe tentasse, sedutoramente,
experimentar as delícias do fruto proibido.
Mas, em
qualquer hipótese, tudo indica
que ela, com total discrição
e senhora de sua conduta pessoal, ainda
se mantém nos limites da ponderação e do
recato.
Certamente, um dia se entregará, prazerosamente e
sem reservas, àquele que a tomará
por esposa, ou por sua amante, seja para
valer, em caráter definitivo, como merece, ou transitório, como aconteceu com sua mãe. Afinal, é mulher...
Se tiver sorte, atraído por sua plástica e moreneza,
por sua exuberância e docilidade, terá o
companheiro ideal, que lhe proporcionará
tranqüilidade e conforto, em troca dos
prazeres que é capaz de lhe prodigalizar. Se não, cumprindo um destino implacável, como objeto do prazer e
sempre cobiçada pelo bicho homem, poderá ficar como joguete, de mão em mão, sem
rumo certo, até que o tempo e as asperezas da vida federal se
encarreguem de desgastá-la. E fatalmente
fenecerá como as flores do
pântano...
O Anel de Madame
Juro que o Zu não era e nunca foi um tipo vulgar,
desses desenxabidos, reles e
arapuqueiros, tão encontradiços nas pequenas
cidades do interior. Ao contrário, sempre foi um sujeito lealdoso, arrumado (vestia-se
bem), alegre e de boa paz. Qualquer um poderia pôr a mão no fogo por sua
retidão e compostura. Os fados é que às vezes lhe pregavam uma peça.
Pertencia ele à família dos Biscoitos, apelido que se transmitia de pais a filhos e que
configurava uma homenagem um tanto
maliciosa a seu bisavô Rafael Luiz de
Campos, pasmem, só porque ele gostava
muito de biscoito... É certo que os
descendentes não se conformavam muito com essa alcunha, inda mais porque, só
para tesar, maldosamente ainda a deturpavam para Biscoito de Sebo... Mas o Zu não estava nem aí por essas irreverentes ninharias.
Com efeito, ele era um cara espirituoso, brincalhão e
finório. Sabia sair-se bem das encrencas involuntárias. De certa forma, lembrava
a figura lendária de Degas Maciegas, que
“pisa na folha e não escorrega” - como
antigamente se dizia no jargão popular -, e as aventuras do famoso Pedro
Malasartes, personagem que desfrutou de invejável simpatia popular.
Suas ladinezas, se assim podemos dizer, eram limpas,
sem a intenção de engambelar a quem quer
que seja. Dele, na pior hipótese, poder-se-ia
dizer que foi um trambiqueiro honesto, já que, sem ser ingênuo, não
botava maldade nas coisas.
Se não teve a sorte de nascer de pais ricos - em berço
de ouro, como se diz - nem de ter
amealhado bens de fortuna de seu trabalho, todavia conseguia manter um trem de
vida razoável, contentando-se com o suficiente, ajudado pela esposa, que era
professora. Aliás, é bom que se diga, ela foi a minha primeira professora.
O traço marcante do seu caráter foi a sua veia de
bom humor. Aos amigos ele contava coisas do arco-da-velha, de sua vida prosaica, aventureira.
Macio e espontâneo, todo mundo gostava de ouvi-lo e se
divertia com as suas façanhas. Um misto de Bocage e do famoso barão de
Munchhausen.
Não digo que foi o meu tipo inesquecível, só meu,
porque não é justo monopolizar um direito que é de todos os que tiveram o privilégio de conviver com ele,
ou mesmo apenas de conhecê-lo de perto.
Muito dedicado à família, quando ainda morava na sua
cidade natal, criava uma vaca malhada da raça holandesa e mansa como um cão, só para dar leite aos filhos. A bem dizer,
ela era a mãe de criação deles.
Certa vez,
tinha chovido muito, a vaca estava do outro lado do rio e este, sem ponte, pegara uma cheia e não dava passagem a vau. Mas ele foi buscá-la assim mesmo, passando pela
pinguela que o Sr. Schimidt mandara fazer. Laçou o animal pelos chifres e, para voltar, galgou aquele
tronco que servia de ponte e puxou-o para atravessar o rio a nado. Mas a forte correnteza levou a vaca rio abaixo e ele, levado pela corda enrolada no
braço, despencou de lá de cima, para um mergulho nas águas revoltas.
Foi salvo pela própria vaca amiga que,
saindo na outra margem, o arrastou pela corda...
Algum tempo depois, com a família, transferiu-se,
de armas e bagagem, para Montes Claros,
onde montou uma pensão monitorada pela esposa, que praticamente cuidava de
tudo, ficando o marido a cargo das
relações públicas.
Ali vieram a ter a
preferência dos
caminhoneiros e demais
conterrâneos que demandavam a capital do Norte de Minas. A casa era antiga mas,
com suas instalações adaptadas e em
ponto central, era razoavelmente confortável e todos os seus hóspedes se compraziam do excelente
passadio. A comida era preparada em extenso
fogão de lenha.
Naquela cidade,
conhecido e conhecendo todo
mundo, o Zu desfrutava de enorme
popularidade, tornando-se uma figura
quase folclórica por suas brincadeiras e trato amigável..
Tanto me falaram daquela pensão - uma espécie de consulado de minha terra natal -, que
certa vez, de passagem pela cidade, fui visitar o Zu e minha professora Nicó,
velhos amigos.
Foi um encontro muito agradável e o Zu se excedeu em gentilezas. Eu já tinha jantado no
hotel em que me hospedara, mas ele não
acreditou. Como já tivesse passado da hora, ele mandou buscar num restaurante
próximo uma refeição completa para mim. E ele ainda foi à cozinha
para trazer um vidrinho de óleo
de pequi, para “adubar a comida”, como
disse.
Naquela noite, para não decepcioná-lo, acabei jantando
duas vezes! Mas não ficou só nisso. Ele
mandara vir um cara seu amigo,
violonista e seresteiro, que me brindou
com modinhas românticas do repertório
sertanejo.
Quanta honra para um
pobre Marquês! - confabulei com meus
botões...
Contaram-me depois um caso interessante desse meu
amigo, sempre brincalhão.
Uma senhora da sociedade local teve sua residência
assaltada por um larápio que levou-lhe
as jóias, inclusive um rico anel de brilhante. A Polícia foi acionada e estava
cuidando do caso.
Naqueles dias
um cara de fora havia abordado o
Zu, para vender-lhe um anel, -
que dizia ter pertencido a sua avó -, ignorando, talvez, o valor da jóia. O cara,
fingindo de simplório, tinha uma lábia tão apurada que o Zu acreditou nele.. E
de boa fé, sem saber do roubo, acabou fechando o negócio, a preço de
banana. O pior é que andou a
comentar a aquisição, com diversas pessoas..
O Delegado soube disso e, para averiguações, mandou convocar o nosso amigo, que compareceu à Delegacia, já
desconfiado do que se tratava.
Tendo ouvido falar das artimanhas do Zu, e procurando
amenizar as coisas, para facilitar a solução tranquila do caso, o Delegado disse que a Madame Tal havia perdido um anel, e contaram-lhe que ele, Zu, havia achado um na rua. Era
verdade?
- É verdade, Dr.Delegado - respondeu, e metendo a mão no bolso tirou dele um anel, que
entregou ao Delegado, perguntando-lhe: - será este?
Surpreso, ao recebê-lo, vendo que era apenas a
garra, o Delegado disse já em tom
incisivo:
- Sim, deve ser, mas cadê a pedra dele?
- A pedra ... eu
perdi, Dr....
- Perdeu? Não
pode ter perdido! Como explicar isso?
- Ora, Sr. Delegado, eu perdi a pedra. E essa Madame aí não perdeu o
anel com pedra e tudo?
O homem de fato dava nó em pingo dágua...
O Casamento de Manoel Sinhô
Isso aconteceu há muitos anos. Naquele tempo, em Lençóis do Rio Verde, os casamentos eram aguardados
e festejados com muita badalação,
principalmente quando o pai da noiva era
homem de posses e o casamento lhe fazia o gosto.
Assim, quando os noivos eram de famílias mais
importantes, as solenidades civil e religiosa realizavam-se na residência dos
pais da noiva, perante o Juiz e o Padre, que
para ali se deslocavam. Nas
cerimônias, o Juiz quase sempre era
lacônico, e falava o estritamente necessário, conforme a lei. Mas a prédica do
Padre celebrante era proporcional ao prestígio das famílias envolvidas. Algumas
vezes, após o ato religioso, os
convidados espargiam arroz à passagem dos nubentes, augurando-lhes prosperidade e alegrias.
Seguia-se a recepção, com felicitações aos recém casados. E depois, lauto
jantar.
O melhor era quando a cerimônia religiosa se realizava na
Igreja e a festa era na roça, onde nunca faltava um animado forró,
seguido de quadrilha, ou contradança, sem faltar os comes e bebes, - churrasco, leitão assado,
quentão e pinga da boa, como convém. Dançava-se até ao raiar do dia seguinte.
Mas, no caso de Manoel Sinhô, a coisa foi mais
simples. Simples e diferente, a exemplo do que aconteceu quando se casou o seu irmão
Joaquim Cachorrinho, também gente
boa, modesta, trabalhadora
e de
bons costumes e cuja noiva, ainda muito jovem e inexperiente, fugiu
apavorada na noite de núpcias.
Manoel Sinhô, já avançado em anos, era homem meio
rude e curtido de sol, falante,
camaradão e raparigueiro. Ao ficar viúvo, ainda esquentado e assanhado nos
forrós, vivia arrastando azas por mulheres, como galo de terreiro, parecendo um
verdadeiro Sátiro. Para os desocupados
filhos da Candinha, valia a pena ver se Manoel Sinhô ainda dava no couro...
Puseram-lhe na
cabeça que, com tanto fogo nas veias, devia casar-se novamente e até lhe
arranjaram a noiva. Era a filha mais velha de Tião Pescoço.
Ela, madurona e acanhada, tinha caído no barricão, pois quase todas as suas irmãs mais novas, umas
até bonitinhas, tinham-se casado, e ela
não, embora vivesse sonhando com os esponsais, apegada a Santo Antônio, o Santo
casamenteiro.
O fato é que a
moça, virgem, casta e pura, se não era um tanto de se jogar fora, embora encarquilhada e só afeita às lides
domésticas - uma boa cozinheira, vá lá -
, podia fazer-lhe a felicidade, quem sabe?
Depois dos entendimentos com o pai dela, homem severo
e de costumes à antiga, ficou decidido que o casamento seria realizado com simplicidade e parcimônia, tudo conforme as
circunstâncias. Por exemplo, a noiva não precisava ir toda apetrechada, como de costume, dispensando-lhe
até o vestido branco. Tudo o estritamente necessário. Não haveria festa, com
comes e bebes. Apenas um café. Mas, à
boca pequena, não faltariam as fofocas.
No dia do casamento, à tardinha, os noivos, parentes,
padrinhos e convidados reuniram-se
previamente na casa do futuro sogro, e de lá partiram, a pé e em procissão a
passo moderado, rumo à Igreja, no largo da Matriz.
À frente do cortejo, dando-lhe um toque festivo,
ia o sanfonista, que se esbaldava com a sua surrada sanfona de oito baixos, tocando uma polca buliçosa e
cadenciada, à guisa de marcha nupcial. E de braços dados, a noiva, um pouco
desajeitada, seguia com o noivo, também meio encabulado.
Aliás, foi a musica arrancada desse instrumento
popular, o que mais chamou a atenção das pessoas, muitas das quais, encontradas
pela frente, se incorporavam ao séquito.
E foi assim que aconteceu um caso interessante.
Meu tio afim Azemar, era um comerciante ladino, muito
importante e experiente na vida, e em sua
loja eu, ainda menino, trabalhava
como caixeiro.
Naquela tarde tranqüila, logo que do canto da praça, à esquerda de sua loja
e um pouco mais abaixo, irromperam-se os primeiros acordes daquela macha
nupcial, coincidentemente o tio Azemar
assomou à porta da casa e curioso perguntou-me assustado: “ O que é aquilo?”
Ele mesmo certificou-se do que estava acontecendo.. O
fato é que tinha sido convidado para padrinho de casamento de
seu amigo Manoel Sinhô, mas não anotou a data. Quase caiu de susto, e perplexo exclamou gaguejando: “Meu Deus, me
esqueci do casamento dele!”
Mas não perdeu
tempo. Num piscar de olho, correu lá dentro e
voltou com capuchos de algodão em
caroço nos ouvidos. Na falta de algodão hidrófilo, foi aquilo que ele arranjou...Quem não tem cão,caça com gatos...
Quando o cortejo passou ao largo, tio Azemar, em pé na
calçada, se virava de um lado para
outro, para mostrar que não compareceu, porque estava com dor de ouvidos...
Não duvido de ter
o noivo percebido que seu
convidado estava mesmo dodói...
Já na Igreja, onde chegaram atrasados, lá
encontraram o Padre, que estava
visivelmente cansado e impaciente com a demora. Em tais circunstâncias, ele
costumava alinhavar os passos rituais, tantas vezes repetidos nas celebrações a
seu cargo.
Tio Vigário era
um Padre respeitado, carismático, mas
bravo e consciente de sua autoridade. Dentre suas
virtudes, era amante do vinho e tinha o condão de ser generoso nas suas ironias, ante as fraquezas da
natureza humana. Nos seus sermões,
costumava verberar os sepúlcros caiados, mas
também tinha seus ditos e adágios
espirituosos e sempre oportunos.
No curso do ato religioso, o Padre não se preocupou
com a posição dos nubentes, no pequeno grupo
que se formou ao pé do
altar, e a noiva, de vestido comum, não
se distinguia das acompanhantes. Afinal, aquela era uma rotina de que já estava
cansado.
E quando ordenou que a noiva colocasse a aliança no dedo da mão esquerda
do noivo, este estendeu-lhe a mão direita. Visivelmente contrafeito, o Padre
lhe indicou:
- A outra!
Manoel Sinhô, que era um pouco surdo, não entendeu,
mas respondeu afobado:
- A noiva é essa mesmo, seu Padre...
- É a outra mão, seu Manoel! - Mas o homem insistiu em
impor a mão direita.:
- Já falei, é a outra mão, o Sr. não está ouvindo?
Então, o noivo estendeu-lhe a mão esquerda, com ar
de súplica, quase como se tivesse
cometido um pecado, mostrando que, infelizmente, nela não tinha o dedo anular, no qual se usa pôr o anel... Desfeita a confusão, o
celebrante esboçou um leve sorriso de aquiescência, e o ritual prosseguiu.
Ao encerrar a cerimônia, Tio Vigário - que era
observador finório - diante daquele casal tão retardado, esboçou um gesto de
quem iria comentar alguma coisa, mas limitou-se a dizer com bonomia, sem medir
o que falava:
- Vá em paz, e o Senhor o acompanhe. Cumpra a sua
obrigação e sejam felizes! O dedo
vizinho do midinho, que o Sr.
perdeu, não é tão importante, não serve
para nada, e certamente não lhe fará
falta nenhuma...
A história
terminaria ai, se o casamento de Manoel Sinhô não tivesse outro
desfecho. Dois dias depois, ao devolver a noiva ao sogro, disse -lhe apenas:
- Ela não serve
mais pra casamento. Mas, se o Sr. quiser, posso aceitar a outra, a mais nova..
O Guarda-chuva
O tranqüilo e correto cidadão da Rua Felipe dos
Santos, após o café da manhã, pegou a
sacola de pano e saiu com sua filha
para abastecer-se de frutas no”Sacolão”
a um quarteirão de sua casa.
Como o tempo estava
chuvoso, em vez da bengala, para apoiar-se, levou consigo o seu
guarda-chuva de fabricação portuguesa, objeto de estimação.
Lá chegando,
encontrou a casa cheia de fregueses, que se acotovelavam para as compras.
Então foi direto a um dos estandes de frutas, onde
uma distinta senhora estava a escolher laranjas, e passou também a selecionar as que ia levar,
colocando-as na sacola, tendo pendurado
o seu guarda-chuva na borda da banca.
Uma vez cheia a sacola, deixou-a na própria banca, junto ao guarda-chuva,
enquanto foi buscar um carrinho lá fora, para nele reunir todas as frutas que
foi comprar.
Ao voltar ao interior
da loja, um indivíduo moreno,
alto e magro, que provavelmente também
se encontrava há mais tempo no
recinto, o interceptou para perguntar-lhe se eram seus os óculos que estavam no
carrinho, e que não tinham sido notados antes.
- Não, não são meus
- respondeu, ao verificar que os óculos eram escuros, artigo barato.
- Então alguém os esqueceu ahi - e assim dizendo tomou a iniciativa de entregá-los ao caixa,
num gesto de aparente colaboração. A pessoa
que os esqueceu, voltaria ali, para procurá-los - fez crer.
Conduzindo o carrinho de mão, o cidadão da rua Felipe dos Santos foi
escolher as outras frutas - pepinos e bananas - no curso de poucos minutos.
Mas ao voltar à banca das laranjas, só encontrou
a sacola cheia que ali deixara. O
guarda-chuva, num átimo, foi-lhe surripiado. E não mais estavam no recito, nem
a distinta senhora, nem aquele senhor dos óculos...
O fato foi levado imediatamente ao conhecimento
do gerente da loja e da moça que
trabalhava no “caíxa”, mas ambos nada puderam fazer. Todavia, todo mundo, com a
casa cheia, ouviu os comentários a respeito, admitindo-se duas hipóteses: de
roubo, ou de mero engano.
É possível que tenha sido um dos dois o autor da
façanha, pois ambos, logo a seguir,
desapareceram do local. A
distinta senhora é suspeita, porque estava próxima do objeto subtraído; e o
cara dos óculos, com suspeita maior, porque provavelmente teria armado um estratagema diversionista, para dar impressão de probidade.
Voltado para casa, o dono do guarda-chuva roubado
digitou, em letras grandes, um apelo a quem o teria “levado por engano”,
esclarecendo que era de fabricação
portuguesa, raríssimo no Brasil, com uma faixa azul, facilmente identificável. E esse aviso foi
colocado na loja em posição bem visível.
Imaginemos
então, hipoteticamente, o que
poderia ter acontecido a seguir, com o principal suspeito.
Ao chegar em sua residência, o cara, trazendo um novo
guarda- chuva , diferente e vistoso, seu filho foi logo lhe perguntando:
- Uai, pai, o
senhor foi às frutas e acabou comprando essa jóia de guarda-chuva, heim?
Deixe-me vê-lo! Que bacana... Onde o senhor o comprou?
Sem nada responder, dando de ombros, apesar do seu
descaramento embutido, no fundo de sua alma o homem, que abominava mentir,
sentiu um calafrio. E foi ao quintal, com pretexto de dar comida ao seu cachorro, na expectativa de que a curiosidade
do filho se desvanecesse.
Três dias depois, ele volta ao “Sacolão”, para compras
e vê, pendurado junto às pencas de bananas, aquele aviso que lhe feriu a vista,
como coisa sinistra.
Depois, com chuva, três vezes precisou de sair, mas
pegava sempre o guarda-chuva velho e já com uma vareta quebrada.
Não teve coragem de
usar imediatamente o guarda-chuva roubado. Toda vez que ele saia com chuva, a mulher insistia, inutilmente, que o
levasse. E na medida em que o fato se
repetia, mais estranheza causava em casa. O homem se sentia encurralado. Tinha
um belo guarda-chuva, mas lhe faltava coragem para usá-lo.
E ainda houve um detalhe intrigante. O filho insistia em saber onde o pai o adquirira e
qual foi o preço pago, porque
desejava comprar outro igual... Mas o
homem desconversava...
Noutro dia, a mulher pretendeu ir ao “Sacolão”
usando o
já fatídico guarda-chuva, mas o marido,
apavorado, opôs tal resistência, que chegaram a se desentender.
- Não entendo o seu ciúme por esse “trem” que ninguém
pode usar. Será que você o roubou?
- Mulher, me respeite!...
Também o filho
ficou grilado com o problema. Até os vizinhos tomaram conhecimento do caso.
Tantos foram os
problemas que iam surgindo, que o homem passou a imaginar uma forma de
desfazer-se do guarda-chuva. Pensou em devolvê-lo, mas, que explicação daria em casa? Como seria
recebido no “Sacolão” depois de vários dias,
tendo estado lá tantas vezes?
Sim. poderia alegar que não o devolvera antes porque se esquecera de levá-lo, mas isso lhe
soava falso. Imaginava cenas deprimentes, constrangedoras. Será que acreditariam
que o levara “por engano”?
Sua mente baralhava. Sentia-se num beco sem saída. Com
tal coisa metida na cabeça, sonhava
constantemente. Sonhos horríveis, tachado de ladrão, às voltas com a
polícia. A cada dia sentia-se mais
deprimido. Perdera o apetite e
definhava. Ficou doente, macambúzio.
Dando tratos à bola, afinal teve uma idéia salvadora. Com o pretexto esfarrapado de
consultar-se com um médico especialista, em cidade vizinha, indicado por um
amigo, inventou uma viagem misteriosa de trem, sozinho, sem admitir acompanhante, e
sempre muito cabreiro, levou consigo o maldito
guarda-chuva, tendo o cuidado de envolvê-lo numa capa, para não ser
notado ou identificado por quem quer que seja. E no caminho, já bem longe, o
atirou pela janela.
Ufa! Quando voltou, sentindo-se aliviado, e
esforçando-se por dar a impressão de ter
sofrido perda irreparável, alegou
em casa que o guarda-chuva tinha sido roubado - o que era a expressão da
verdade...